02/12/2017

'Redes sociais reduzem noção de vergonha, diálogo e empatia', diz psicoterapeuta americano

Post de Bruno Gagliasso sobre adoção da filha, alvo de comentários racistas nas redes sociais
Post de Bruno Gagliasso sobre adoção da filha, alvo de comentários racistas nas redes sociais Reprodução/Instagram

"(...) A menina é preta, tem o cabelo horrível de pico de palha, tem o nariz de preto, horrível, e o povo fala que ela é linda".

Gravadas em vídeo pela socialite brasileira Day McCarthy, essas e outras declarações em que ataca Titi, filha dos atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank, vêm causando polêmica desde a semana passada nas redes sociais.

A criança tem 4 anos e é negra.

"Eu senti o que qualquer ser humano decente sentiria: tristeza, uma sensação de impotência. Covardia, não é? É uma criança", disse Gagliasso, em entrevista coletiva quando registrou queixa na delegacia, em 27 de novembro.

"Mais tarde", segundo ele, a filha vai ter noção do que aconteceu.

"Quando der um Google, ela vai saber que os pais dela estiveram do lado dela, que os amigos estiveram do lado dela. Vai saber que eu acho que a sociedade inteira esteve do lado dela", acrescentou, afirmando que a agressora "precisa ser presa".

A polícia abriu inquérito e deve intimá-la a prestar depoimento.

Vergonha

O caso exemplifica o que Aaron Balick, psicoterapeuta, palestrante e autor americano baseado em Londres, chama de "novo tipo de vergonha" ─ que ganha força no ambiente digital e também é visto em situações como ridicularizar alguém publicamente.

"A resposta para o porquê de esse tipo de comportamento estar ficando mais comum é curta: as redes sociais reduzem a noção de vergonha", afirma ele em entrevista à BBC Brasil, se referindo ao fato de muitos usuários se sentirem com o poder de postar o que quiserem, como quiserem, doa a quem doer.

"Esses usuários geralmente estão pensando mais nas curtidas que a postagem vai receber, sem ponderar como essa postagem pode fazer os outros se sentirem".

 

Para Aaron Balick, muitas vezes os usuários desconsideram como suas postagens podem fazer os outros se sentirem
Para Aaron Balick, muitas vezes os usuários desconsideram como suas postagens podem fazer os outros se sentirem BBC BRASIL

As forças que movem as pessoas online são explicadas no livro The Psychodynamics of Social Networking: connected-up instantaneous culture and the self ("A psicodinâmica da rede social: cultura instantânea conectada e o eu", em tradução livre), escrito originalmente em inglês e ainda sem previsão de publicação no Brasil.

Segundo Balick, é possível envergonhar alguém sem ter a intenção, mas também fazer isso de forma proposital e, nesse caso, "é muito fácil expor a vítima em uma escala imensa", tendo em vista o tamanho do público que serve de testemunha.

"As redes sociais, ajudadas e instigadas pelas tecnologias móveis, geralmente ignoram nossos sistemas de autocrítica e nos dão uma sensação de onipotência que pode ter sérias consequências na esfera social", alerta.

Um bom exemplo disso, diz ele, ocorre quando internautas fotografam estranhos, sem consentimento, para postar nas redes sociais.

A partir daí, imagens de alguém comendo no metrô, de pessoas que os outros consideram estar mal vestidas e até de "pessoas atraentes" acabam brotando em grupos virtuais e em meio às timelines - sujeitas a julgamentos em massa.

 

"O objetivo do fotógrafo é registrar a imagem e postar, por curtidas e aprovação. Os sentimentos das pessoas que foram fotografadas são comumente ignorados", diz Balick. "Isso significa que estamos mais propensos a objetificar os outros e a pôr nossas próprias necessidades de validação à frente da necessidade de privacidade deles".

A noção de vergonha reduzida nas redes sociais é perigosa, segundo o psicoterapeuta, porque torna todos mais vulneráveis ─ não só os alvos da postagem, mas também quem posta.

"As redes sociais operam como uma extensão do nosso mundo social. Nossos 'eus' são estendidos online e nos deixam vulneráveis à percepção dos outros de um jeito que nunca vimos", opina Balick.

"Além disso, há uma escala de exposição, isto é, muitas pessoas podem testemunhar o evento que causa vergonha, junto ao fato de que qualquer evento é propenso a ficar eternamente disponível - o que pode ser fatal para a reputação de alguém".

Mesmo em uma rede social como o Facebook, que ele avalia como "mais amigável", as pessoas podem estar inclinadas a serem mais rudes, porque não conseguem o retorno emocional normal de quem está lendo a mensagem ou assistindo do outro lado da tela.

 

Diferentes redes sociais evocam diferentes aspectos psicológicos dos usuários e isso pode servir de estímulo a comportamentos "anti-sociais"
Diferentes redes sociais evocam diferentes aspectos psicológicos dos usuários e isso pode servir de estímulo a comportamentos "anti-sociais" BBC BRASIL

Getty Images / alexsl

 

As redes sociais evocam diferentes aspectos psicológicos do usuário e podem causar o chamado "efeito desinibição online".

Na visão de Balick, isso significa que, na internet, as pessoas ficam mais encorajadas a agir de forma antissocial, comportamento que muitas vezes evitariam se estivessem cara a cara com o outro.

O freio que impede a adoção de certas posturas "na vida real" muitas vezes não funciona no ambiente virtual justamente por causa desse "efeito", diz ele.

"Esse freio vem da nossa capacidade crítica, ou do que os psicólogos chamam de funcionamento executivo. A função executiva pode ser contornada ou evitada online de diversas formas". A principal que ele cita é o efeito de desinibição online.

 

Getty Images / Simotion Se esconder por trás de perfis fakes ajuda a driblar normas sociais e muitas vezes desperta o lado mais obscuro do usuário, diz especialista Fakes

 

A situação fica ainda pior quando os posts são disparados por perfis falsos, que "muitas vezes apelam para o lado mais obscuro" do usuário.

"Como ele não está identificado, os aspectos mais agressivos ou antissociais de sua personalidade podem ser ativados, o que pode estimular bullying, trollagem, ou geralmente apenas comportamentos desagradáveis", diz.

Ao se esconder por trás de um "fake", o indivíduo consegue contornar mais facilmente normas sociais, evitando a crítica direta dos outros. É como se fugisse das consequências por um mau comportamento.

Se o que vai prevalecer na rede é o lado "social ou o antissocial" da pessoa vai depender da plataforma que está usando e, claro, de como escolhe usá-la com base na sua própria psicologia, diz Balick.

Essencialmente, segundo ele, as pessoas buscam nas redes sociais conexão e autoexpressão em um contexto social, mas não conseguem, com isso, substituir o que a vida off-line proporciona.

"Redes sociais são capazes de oferecer uma forma disso, mas não podem substituir o tipo de autoexpressão e conexão recebidos via ambientes sociais off-line", reforça, frisando que enquanto a rede social é usada apenas como extensão da rede social off-line ela pode ser um benefício adicional. "O problema acontece quando ela vira substituta".

Suspeitas e acusações online

Casos de racismo - não só o relacionado à Titi - e suspeitas de abuso sexual envolvendo pessoas famosas viraram "trending topics" nos últimos meses, ou seja, ficaram entre os assuntos mais comentados nas redes sociais.

Entre acusadores e defensores, Balick defende uma postura mais ponderada por parte dos internautas e aponta potenciais riscos nessa espécie de tribunal online.

"Devemos viver em uma sociedade em que somos inocentes até que se prove o contrário e, hoje, a reputação de alguém pode ser arruinada por um único tuíte, seja ou não esse tuíte verdade e seja ou não o indivíduo absolvido após o fato. Pode ser realmente que aqueles acusados e publicamente humilhados tenham cometido os crimes ou pode ser que sejam inocentes", diz ele.

 

Psicoterapeuta chama atenção para casos de humilhação online e também para quando as redes sociais viram tribunal
Psicoterapeuta chama atenção para casos de humilhação online e também para quando as redes sociais viram tribunal BBC BRASIL

"Contágio perigoso"

 

O especialista alerta sobre os riscos do "contágio social e emocional" - que é como a reação a esse tipo de caso comumente ganha adeptos e se espalha, o que ele classifica como "perigoso".

"Virar uma cultura de multidão reativa - em que as pessoas se engajam para exigir punição, por exemplo - é assustador: Isso costumava levar as pessoas a lincharem e a cortarem cabeças (no passado)", analisa.

"Para ser claro, a questão não é absolver maus comportamentos. No entanto, devemos ser muito cuidadosos em encorajar uma sociedade baseada em regras populares e humilhação pública".

Um outro ponto de "perigo" que levanta é que, hoje, esse tipo de reação se expressa em casos que envolvem ações ilegais e nocivas.

"Mas e se isso mudar?", questiona. "E se as pessoas começam a ficar envergonhadas pelas escolhas privadas que estão fazendo? O meu medo é que esse patrulhamento social possa sair muito rapidamente do controle".

Para o psicoterapeuta, histórias de indivíduos sendo mal interpretados, tirados de contexto e expostos nas redes sociais por causa disso são vistas todos os dias e usadas, por muitos, para obtenção de ganhos pessoais e até políticos.

"Em uma era em que a capacidade de concentração das pessoas é curta, e ainda mais em que as pessoas não estão dispostas a investigar mais fundo para encontrar a verdade ou contextos mais profundos, as pessoas podem ser condenadas ao bel prazer de um tuíte", reforça.

 

Menos empáticos e mais polarizados

Pela ausência de complexidade nos relacionamentos e de profundidade emocional, segundo Balick, as redes sociais tendem a reduzir a empatia e o diálogo, acentuando a polarização entre os usuários.

"As redes sociais certamente não são desprovidas de empatia, mas em uma escala cultural de massa, elas parecem estar mais inclinadas ao bairrismo e isso acaba reduzindo, em vez de ampliar, o diálogo através de divisões ideológicas".

Essas divisões, observa ele, são cada vez mais aparentes através das redes e ampliadas por elas. Isso ocorre "porque é fácil tomar partido sem se envolver na nuance de um argumento".

"O mundo se divide em bom e mau e a nuance se perde. Em encontros cara a cara isso é mais difícil de manter isso porque o diálogo atenua o pensamento polarizado simplista ao permitir que vejamos a humanidade no outro", diz.

Isso não significa, porém, que seja impossível encorajar mais pensamentos empáticos nesse meio e os desenvolvedores desses sites teriam papel importante nesse sentido.

 

Adaptações

 

O caminho que aponta seria a criação de ferramentas que permitam mais diálogo, envolvimento, além de modos de ser e pensar mais complexos.

"Eu acho que há a possibilidade de integrar essas mudanças a plataformas que já existem. Tome como exemplo o botão de curtir do Facebook. Por anos ele foi a única opção, mas agora há variações que expressam surpresa, raiva, tristeza e etc. É uma pequena mudança, mas ela admite outra camada de complexidade", diz Balick.

Outra adaptação possível, exemplifica ele, seria quando "um valor político" fosse consistentemente apresentado no perfil do usuário o Facebook sugerir algo como "você gostaria de ler sobre uma visão diferente?".

"Tipos diferentes de interações também poderiam ser encorajados entre indivíduos diferentes. Por exemplo, nos Estados Unidos, encorajar pessoas de posição conservadora a se envolverem com pessoas de visão liberal; no Reino Unido, fazer isso para pessoas anti-Brexit falarem com pessoas pró-Brexit, ou em Israel/Palestina para israelenses falarem com palestinos".

Dada a crescente polarização entre ideologias políticas, ele diz considerar que "ser mais empático é fundamental".

"Como temos visto, as redes sociais têm sido um pouco boas demais em isolar pessoas em seus próprios círculos e alimentá-las com notícias (reais e falsas) para reforçar suas posições", diz.

"Mas concessões, compreensão e empatia são cruciais em diversas sociedades e nós precisamos educar nossas tecnologias rapidamente para lidar com isso", conclui.

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