A implantação do 5G no Brasil vem chamando atenção do mundo não apenas pelo porte do leilão que vai definir quem vai participar desse mercado, mas por ter se tornado uma arena da rivalidade tecnológica entre China e Estados Unidos.
A maior fornecedora de equipamentos para telecomunicações do mundo, a chinesa Huawei, vem sendo acusada pelos EUA de servir como instrumento de espionagem ao governo chinês.
Sob o argumento da segurança nacional, os americanos têm pressionado para que o Brasil deixe a empresa de fora do megaleilão marcado para o próximo ano, que, segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), caminha para ser o maior do mundo.
Em julho, o embaixador americano no Brasil, Todd Chapman, disse acreditar que o país sofreria "consequências" econômicas negativas caso decidisse pela permanência da companhia chinesa no certame. Seu argumento foi de que empresas americanas poderiam deixar de investir no Brasil por receio de que a presença chinesa representasse um risco à sua propriedade intelectual.
Do outro lado, a China rebate as acusações dizendo que a investida dos americanos visa barrar seu crescimento tecnológico. E, à semelhança dos americanos, representantes da diplomacia chinesa no Brasil também têm feito comentários interpretados muitas vezes como ameaças veladas.
Mais recentemente, o embaixador chinês no Brasil, Yang Wanming, disse acreditar que o Brasil tomaria uma "decisão racional" sobre o 5G e afirmou que o leilão serviria para as empresas chinesas avaliarem a "maturidade" do país.
O que faz sentido dentro das acusações feitas pelos americanos e quais consequências práticas de uma eventual decisão do Brasil por manter ou excluir a Huawei do leilão?
A BBC News Brasil aponta a seguir os principais questionamentos relacionados ao tema, com ponderações da em geotecnologia da consultoria Eurasia Clarise Brown, que se dedica a estudar a relação entre a emergência de novas tecnologias e a geopolítica internacional.
Os EUA não foram os únicos a expressar preocupação de que os equipamentos da Huawei pudessem servir de instrumento para a inteligência chinesa.
Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia, Japão, Itália, França, República Tcheca, Polônia, Estônia, Romênia, Dinamarca, Letônia e Grécia também baniram o uso de equipamentos da empresa em seus respectivos países.
A decisão mais recente é a do Reino Unido, que anunciou em julho que excluiria a Huawei de sua rede 5G e retiraria todos os equipamentos da gigante chinesa de sua rede de telecomunicações até 2027.
Neste mês de outubro, um comitê do Parlamento britânico disse ter concluído haver "evidências claras" de conluio entre a Huawei e o aparato do Partido Comunista Chinês. A empresa rebateu dizendo que o relatório estava mais baseado em opiniões do que evidências.
Apesar de se tratar de uma empresa privada, a Huawei está sujeita à lei de segurança nacional chinesa aprovada em 2017, que permite que o governo requisite dados de companhias privadas, caso a necessidade seja classificada como importante para soberania do país.
E é essa suscetibilidade à lei de segurança nacional que preocupa muitos dos países que têm decidido agir contra a empresa.
Para a especialista, entretanto, com base apenas em critérios técnicos não é possível dizer com certeza se a Huawei é de fato um instrumento de espionagem chinês.
Ela destaca, entretanto, que a tecnologia 5G, por sua própria natureza, tende a deixar os países vulneráveis quando se trata de cibersegurança.
Para entender essa lógica é preciso ter uma noção mais clara do que o 5G representa. Ele não é apenas uma nova frequência de rádio será aberta para permitir a transmissão de dados digitais.
Como uma velocidade entre 10 e 20 vezes maior que o 4G, vai permitir uma transformação radical, abrindo caminho para desenvolvimento de carros autônomos, por exemplo, e das redes inteligentes (smart grids) de que eles precisam para operar.
É uma tecnologia dominada pela comunicações do tipo máquina (ou MTC, do inglês machine-type communications), em que a intervenção humana é bem menor e a geração, troca e processamento de dados é feita muitas vezes de forma autônoma.
As redes 5G vêm com dois modos de operações novos, as comunicações ultraconfiáveis e de baixa latência (URLLC, de Ultra-Reliable Low Latency Communications) e as comunicações massivas máquina-a-máquina (MM2M, de Massive Machine-to-Machine Communications).
Essas novas redes precisam de uma grande infraestrutura física, de cabos de fibra óptica a data centers. À medida que o mundo se torna mais dependente da tecnologia e quantidades monumentais de informação circulam por esses novos caminhos, aumenta a vulnerabilidade de empresas, setores, cidades ou mesmo países a eventuais ciberataques.
"A própria natureza da rede aumenta o risco relacionado à infraestrutura física e a questões relacionadas a dados", diz a pesquisadora.
"Acho que isso é algo que o Brasil definitivamente precisa ter em mente em seu processo de decisão", ela respondeu.
O risco, ela acrescenta, pode ser maior ou menor a depender dos mecanismos que o país desenvolva para mitigá-los. O próprio Reino Unido mantém um sistema de monitoramento ativo em busca de falhas de segurança há anos, assim como a Alemanha.
"É possível criar mecanismos de rastreamento, mas é difícil dizer com 100% de certeza que você consegue remover o risco de espionagem", ela alerta.
Nesse sentido, Brown lembra que em outubro o National Cyber Security Centre (NCSC), do Reino Unido, publicou um relatório em que avaliava que a Huawei não havia feito melhorias suficientes para eliminar falhas de segurança que haviam sido localizadas em equipamentos usados pela rede de telecomunicações do país.
"É importante enfatizar isso: nenhuma medida é totalmente garantida em termos de cibersegurança."
Ela avalia ainda que seria difícil para o Brasil ter sistemas de rastreamento semelhantes aos de países europeus, levando-se em consideração a necessidade de investimento e o momento atual da economia brasileira, golpeada pela pandemia de covid-19.
A Huawei está no Brasil há cerca de 20 anos. Seus equipamentos estão espalhados pelas milhares de antenas utilizadas pelas grandes operadoras de telefonia nas tecnologias 2G, 3G e 4G.
Assim, uma eventual exclusão da empresa do leilão poderia atrasar a implantação do 5G e elevar o custo do processo. É o que ficou conhecimento nos EUA como "rip and replacement costs", o custo para retirar a infraestrutura existente, uma vez que os equipamentos da empresa chinesa foram banidos, e substituí-los com outros.
Hoje, além da Huawei, são grandes fabricantes de equipamentos a sueca Ericsson e a finlandesa Nokia. A coreana Samsung também tem crescido nesse mercado.
A especialista acrescenta, por outro lado, que o auxílio financeiro oferecido pelos EUA aos países que se dispuserem a banir a fabricante chinesa pode mudar os pesos da equação.
O embaixador americano no Brasil, Todd Chapman, já declarou em mais de uma ocasião que os EUA concederiam crédito ao país caso optasse por excluir a Huawei do leilão. No fim de outubro, os dois países assinaram um memorando de entendimentos no valor de US$ 1 bilhão, investimentos que viriam do Banco de Exportações e Importações dos EUA (Exim Bank).
"A questão dos custos é importante, mas, se as alternativas de financiamento americanas de fato acontecerem, acho que poderia reduzir o impacto em alguma medida."
O banco estatal americano Development Finance Corporation (DFC), ela lembra, tem hoje em seus cofres cerca de US$ 60 bilhões disponíveis exatamente para financiar essas iniciativas, já que o 5G é uma das prioridades americanas no momento.
A ofensiva contra a Huawei é uma plataforma do presidente Donald Trump, que desde o início do mandato tem adotado uma postura hostil contra a China.
Caso o presidente não seja reeleito no próximo dia 3 de novembro, na avaliação de Brown, algumas elementos podem mudar na forma como o país vem lidando com a questão da gigante de tecnologia.
O democrata Joe Biden teria uma tendência de ouvir mais o Congresso, ela diz, e de adotar uma abordagem mais multilateral, que considerasse as preocupações de aliados como o Brasil.
Assim, o custo político de não se alinhar aos EUA nessa questão seria menor.
Em relação ao financiamento sinalizado nos últimos meses pelos americanos, ela acrescenta, é difícil prever como isso seria impactado caso houvesse uma troca de comando na Casa Branca.
No curto prazo, entretanto, ela avalia que a tendência é que a possibilidade seja mantida, dado o fato de que o DFC já possui um volume elevado de recursos com esse propósito e que no Congresso há cada vez mais um consenso entre republicanos e democratas de que o país deve adotar uma postura dura em relação à China.
"A pergunta então seria quanto seria disponibilizado, mas acha que o financiamento em si ainda vai existir."
No cenário em que o Brasil cede à pressão americana, a resposta chinesa é difícil de prever.
O agronegócio brasileiro teme eventuais represálias, como uma redução das importações. A China é desde 2009 o principal parceiro comercial do Brasil, um grande comprador de commodities como soja e minério de ferro.
Brown pondera que, se de um lado o embaixador chinês deu declarações que possam ser consideradas ameaças veladas, por outro o país é bastante pragmático nas relações internacionais e acaba sendo dependente do Brasil como fornecedor de produtos básicos.
"A China sempre deu preferência a uma resposta mais moderada. Acho que é difícil dizer que eles simplesmente tomariam uma atitude mais extrema, como um boicote às importações brasileiras", pontua.
"Mais fácil ver como a Huawei poderia responder", diz ela.
Em agosto, a empresa anunciou a intenção de investir US$ 800 milhões em uma fábrica em São Paulo, vista por muitos como contingente à decisão de permitir que a companhia participasse do leilão.
Caso fosse excluída, a companhia poderia dar um passo atrás, como fez, por exemplo, no caso da Austrália, onde a empresa também fez demissões.
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