Buscando uma perspectiva local para o 50º aniversário da chegada à Lua nesta semana, a rádio americana WTOP, de Washington, publicou uma biografia do cientista especializado em foguetes Wernher von Braun, enterrado na vizinha Alexandria em 1977. O artigo, no entanto, foi duramente criticado e rapidamente removido. O motivo? A rádio não mencionou que von Braun era nazista.
Há poucos cantos do progresso científico que não foram contaminados em algum momento por algum comportamento imoral ou antiético. Física, biologia, zoologia, medicina, psicologia, imunologia, antropologia, genética, nutrição, engenharia... Todos esses campos convivem com descobertas feitas em circunstâncias que podem ser descritas como desumanas ou ilegais.
Mas como devemos nos sentir sobre o uso desse conhecimento, especialmente quando ele pode ter grande utilidade para a civilização e até salvar vidas?
A presença de Von Braun no programa Apollo não foi um ponto fora da curva. Mais de 120 cientistas e engenheiros alemães se juntaram a ele no programa espacial, incluindo Kurt Debus, oficial da organização paramilitar Schutzstaffel que se tornou diretor do Centro de Operações de Lançamentos da Nasa; e Bernhard Tessmann, projetista do colossal Edifício Vertical da Assembléia no que hoje é o Centro Espacial Kennedy.
Eles estavam entre os 1,6 mil cientistas recrutados por espiões como parte da Operação Paperclip no final da Segunda Guerra Mundial - todos protegidos de serem processados judicialmente, com passagem garantida e segura para os EUA e permissão para continuar trabalhando.
As forças aliadas também incorporaram inovações nazistas. Armas químicas como tabun e sarin, a cloroquina antimalárica, a metadona e as metanfetaminas, bem como a pesquisa médica em hipotermia, hipóxia, desidratação e outros, foram todas descobertas geradas a partir de experimentos humanos em campos de concentração.
Aglomerados de madeira, formas de borracha sintética e o refrigerante Fanta também foram desenvolvidos pelos alemães sob o domínio nazista.
Pacientes intencionalmente infectados
Mas este é apenas um dos episódios antiéticos na história da ciência. Por 40 anos, a partir de 1932, pesquisadores da Universidade Tuskegee, no Alabama, acompanharam o progresso da sífilis em centenas de homens negros pobres - nenhum dos quais recebeu diagnóstico ou tratamento, apesar do antibiótico penicilina, que poderia curar a doença, estar disponível na época.
Em um estudo relacionado, na década de 1940, médicos americanos infectaram intencionalmente pacientes desavisados com doenças sexualmente transmissíveis para estudá-las. Conscientes do problema público que isso poderia gerar, os experimentos foram realizados na Guatemala.
De 1955 a 1976, no que ficou conhecido como The Unfortunate Experiment (O experimento infeliz, em tradução livre), centenas de mulheres com lesões pré-cancerosas foram deixadas sem tratamento para se observar se desenvolveriam câncer cervical. Detalhes do estudo só vieram à tona após denúncias de duas ativistas, Sandra Coney e Phillida Bunkle.
A vacina contra a pólio e muitos outros avanços médicos devem sua existência a células humanas que foram retiradas de Henrietta Lacks sem seu conhecimento ou consentimento. Ela tampouco recebeu qualquer compensação financeira para isso. A linha celular cultivada a partir dessas amostras iniciais tem sido usada em inúmeras pesquisas sobre drogas, toxinas, vírus e o genoma humano.
E, na década de 1950, Robert G. Heath foi pioneiro no uso de eletrodos implantados no cérebro - um dos objetivos era tentar a partir disso alterar a orientação sexual de uma pessoa. Hoje, tecnologia similar é usada no tratamento para a epilepsia e Parkinson e no implante neural recentemente anunciado por Elon Musk.
Não é controverso argumentar que essas experiências nunca deveriam ter acontecido. Mas, agora que elas ocorreram, o que deve ser feito com as informações que geraram?
"A intuição básica é que, se as informações foram obtidas de forma antiética, mas usamos essas informações, nos tornamos cúmplices do passado", diz Dom Wilkinson, especialista em ética médica da Universidade de Oxford, na Inglaterra.
Essa é uma visão comum, mesmo entre aqueles que fazem uso de tais descobertas.
Escrevendo no jornal de bioética The Hastings Center Report em 1984, Kristine Moe relata uma conversa com John Hayward, um dos principais especialistas em hipotermia da Universidade de Victoria, no Canadá, que utilizou dados de nazistas em seus estudos.
"Não quero ter de usar esses dados, mas não há outros e não haverá outro em um mundo ético", ele disse a ela. "Racionalizei um pouco. Mas não usá-los seria igualmente ruim".
Wilkinson lembra, porém, que estas descobertas raramente fornecem informações importantes isoladamente. "A informação científica é como uma peça em um quebra-cabeça: ela se encaixa em um jogo maior", ressalta.
Por exemplo, as contribuições de Wernher von Braun para o programa espacial Apollo podem ter sido consideráveis, mas é impossível dizer se a Nasa poderia ou não ter descoberto como pousar na Lua sem a ajuda dele.
Enquanto isso, os resultados dos experimentos em Tuskegee e do The Unfortunate Experiment não mudaram drasticamente nossa compreensão da sífilis ou do câncer - mas, para a ciência, não apresentar achados positivos também é parte do processo.
Pode ser tentador pensar que práticas médicas antiéticas são uma coisa do passado, que a ligação da medicina com a imoralidade foi um erro de meados do século 20. Infelizmente, esse não é o caso.
Casos recentes de pesquisas antiéticas
Ecoando os estudos sobre a sífilis na Guatemala, muitos ensaios clínicos até hoje são realizados em países em desenvolvimento, provavelmente pelas mesmas razões: a legislação é mais permissiva e o risco da divulgação de resultados negativos é menor.
Um relatório de 2008 publicado pelo Centro de Pesquisa sobre Empresas Multinacionais revelou detalhes de muitos desses ensaios antiéticos realizados na Índia, Nigéria, Rússia, Argentina e Nepal, entre outros. Ele revelou, por exemplo, mortes não registradas de 14 mulheres em Uganda após testes com o Nevirapine, uma droga contra HIV.
O documento também mostrou que oito pacientes em Hyperabad, na Índia, morreram em um teste com a droga anticoagulante estreptoquinase - e que nenhum deles estava ciente de que participavam de um experimento.
O desejo de fazer algum bem com os dados, mesmo que obtidos de maneira antiética, tem seus próprios problemas. Além de carregar o peso da cumplicidade, usar as descobertas envia uma mensagem aos pesquisadores de hoje e de amanhã que é melhor pedir desculpas do que permissão?
"Há algo muito particular sobre o conhecimento, que é o fato dele ser irreversível. Você não pode desconhecer alguma coisa", diz Wilkinson. "Uma preocupação em usar estes dados é que eles encorajam futuros pesquisadores a pensar algo como: 'A história me julgará positivamente'. Não queremos isso, não queremos promover pesquisas antiéticas".
Wilkinson destaca o recente caso de um pesquisador chinês que anunciou em 2018 ter criado os primeiros bebês com genes editados. "É um exemplo realmente impressionante. Parece que ele foi motivado pela fama associada a ser o primeiro", diz.
Essa visão é ecoada pela Comissão de Saúde da China, cuja investigação sobre a pesquisa concluiu que o cientista "conduziu ilegalmente o estudo na busca de fama e ganhos pessoais". Como outros indivíduos que cometem crimes buscando a notoriedade, diz Wilkinson, devemos nos esforçar para não tolerar este comportamento ou dar a fama que procuram.
Mas, mesmo se pudermos separar as ações das pessoas das descobertas científicas que elas geram, ainda não estamos fora do labirinto moral. O que acontece quando a pesquisa problemática ainda está para ser feita?
Esse é o dilema levantado por uma controversa coleção de amostras de sangue de mais de três milhões de escoceses que atualmente está sob a guarda de órgãos governamentais de saúde.
O que fazer com os dados genéticos coletados sem consentimento na Escócia
As amostras foram coletadas como parte de um teste de rotina realizado em todos os recém-nascidos para verificar uma série de condições genéticas. Mas, de 1965 a 2003, a permissão dos pais para o armazenamento das amostras nunca foi solicitada, o que significa que o banco de dados inteiro é legalmente questionável.
O banco guarda um material amplo da genética da Escócia e, portanto, representa um recurso precioso para pesquisadores. No entanto, por conta das questões em torno de como foi coletado, existe atualmente uma moratória na realização de pesquisas com ele.
"Esses tipos de situações não são diretamente 'éticas' ou 'antiéticas' - elas envolvem preocupações éticas concorrentes, e todas elas precisam ser levadas em consideração", diz Anne Wilkinson, do Nuffield Council on Bioethics, um órgão independente que avalia a ética nos avanços da medicina no Reino Unido.
Benefícios sociais importantes podem ser obtidos usando o banco de amostras, diz ela. "Mas isso simplesmente não superara as preocupações sobre consentimento, privacidade, riscos associados ao uso de informações pessoais e o respeito pelas opiniões sobre este uso."
Autoridades na Escócia estão agora embarcando em consultas com pesquisadores, eticistas, pacientes e cidadãos sobre o que deve ser feito com a coleção. Uma opção é permitir que aqueles que se opõem ao uso possam optar por não fazer parte de qualquer pesquisa - mas demonstrar que houve uma busca adequada pela permissão retroativa de três milhões de pessoas não é uma tarefa fácil.
É da natureza humana tentar conseguir ver coisas boas em más situações. Mesmo no Gueto de Varsóvia, Moe observa, os médicos judeus fizeram anotações meticulosas sobre a saúde de seus colegas residentes, dados que foram contrabandeados e depois publicados como um estudo histórico sobre os efeitos da fome.
"A decisão de usar os dados não deve ser tomada sem remorso ou sem reconhecer o horror incompreensível que os produziu", escreveu ela sobre a pesquisa nazista. "Não podemos incluir qualquer aprovação destes métodos. Tampouco devemos deixar que a desumanidade dos experimentos nos cegue para a possibilidade de que algum bem possa ser resgatado das cinzas."
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