Thiago*, de 27 anos, chegou ao Reino Unido há menos de um ano com pouco dinheiro no bolso e o sonho de conseguir viver fora do Brasil pela primeira vez na vida. Veio com a intenção de morar e ter um emprego em Londres, mas entrou no país como turista, o que não lhe permite trabalhar legalmente.
Pouco depois de chegar, ele descobriu um mercado clandestino de aluguel e venda de contas de aplicativos de entrega negociado abertamente nas redes sociais, que tem atraído cada vez mais imigrantes ilegais no Reino Unido. "Virou um comércio. Aluguel de conta é o que mais tem", diz.
O brasileiro diz que o mercado de autônomos que fazem entregas de moto ou bicicleta é menos controlado pela imigração britânica e, por isso, oferece menos riscos para quem não tem documentação em dia, como ele. "Em restaurante que contrata imigrantes pode ser que tenha fiscalização, mas nos aplicativos é mais difícil", afirma Thiago, que atualmente paga 60 libras (o equivalente a R$ 280) por semana para usar a conta de outra pessoa no Uber Eats, aplicativo de entrega de comidas.
A BBC News Brasil mergulhou nesse mercado clandestino usado por brasileiros e outros imigrantes ilegais no Reino Unido para saber como ele funciona.
Identidades alugadas
Pessoas com situação legalizada no Reino Unido - ou seja, que estejam autorizadas a trabalhar - abrem contas como entregadores em aplicativos como Uber Eats, Deliveroo ou Stuart, que estão entre os mais populares no país.
Essas contas são oferecidas para "aluguel" em anúncios colocados em páginas de comunidades de brasileiros e de latinos no Facebook e em grupos no WhatsApp - onde podem ser "alugadas" por pessoas em situação ilegal.
Nessas mesmas páginas no Facebook e nos grupos de WhatsApp é possível anunciar que se está à procura de uma conta - principalmente para trabalhar de entregador em Londres, na Inglaterra, e em Dublin, na República da Irlanda.
Não são apenas os brasileiros que negociam contas de aplicativos de entrega. Apesar de a maioria dos anúncios ser em português, a reportagem identificou também ofertas em inglês e em espanhol em diversas páginas.
Um motoboy que trabalha legalmente e se diz contra a prática de aluguel de contas contou à BBC News Brasil que tem gente vindo do Brasil já com a conta alugada para começar a trabalhar no Reino Unido, mesmo entrando no país como turista.
A prática também existe em outros países. Recentemente, uma reportagem do New York Times relatou como imigrantes ilegais desesperados estão sendo explorados na França com um esquema muito parecido.
Requisitos
Para poder abrir uma conta em aplicativos de entrega no Reino Unido, é preciso atender a uma série de requisitos, como ter mais de 18 anos de idade, não ter antecedentes criminais e o direito de morar e trabalhar legalmente no país. No caso de entregas com motos, é necessário ainda apresentar cópia da carteira de motorista e um seguro do veículo.
Antes de adquirir uma conta, todos os documentos dos entregadores - como passaporte, comprovante de endereço e certidão de antecedentes criminais - são conferidos pelos aplicativos de entrega.
A fraude ocorre quando uma pessoa que pode trabalhar legalmente no país e que passou pelo crivo da empresa decide alugar ou vender sua conta para outras pessoas. Assim, aquele que não consegue uma conta oficialmente (em geral imigrantes ilegais) paga um valor semanal para usar o aplicativo e fazer entregas usando o nome - e, às vezes, até a foto do titular da conta.
Redes sociais são usadas abertamente nesse comércio ilegal, tanto por quem quer trabalhar com uma conta alugada quanto por quem quer alugar a própria conta. Muita gente pede para negociar os detalhes em conversas privadas no Facebook, mas há quem divulgue o próprio número de telefone em anúncios. Já no WhatsApp, há um grupo só de aluguel de contas para Londres onde vários anúncios são compartilhados diariamente.
Os aplicativos de entrega estão cientes do problema e consideram o aluguel de contas uma falha contratual grave. As empresas dizem desabilitar as contas usadas indevidamente - e que essas são descobertas geralmente após denúncias.
As empresas não informam quantas contas foram desabilitadas - nem quantas denúncias sobre quem está trabalhando indevidamente usando identidades de outras pessoas foram feitas ao Home Office, o Ministério do Interior do Reino Unido responsável pela imigração no país.
Aluguel de até R$ 375 por semana
A reportagem se fez passar por uma pessoa interessada em uma conta. Os contatos foram todos com brasileiros. As conversas foram pelo WhatsApp ou por telefone, a partir de anúncios em grupos privados e públicos nas redes sociais.
Mas há relatos de que pessoas de outras nacionalidades também alugam contas. No Facebook, por exemplo, um venezuelano oferecia a própria conta e um equatoriano perguntava se alguém tinha uma para alugar para ele.
A maioria dos donos de conta cobra um depósito e um aluguel antecipado. Em geral, os preços variam de 50 a 80 libras (de R$ 234 a R$ 375). Isso significa que, para começar a trabalhar como entregador, quem aluga a conta precisa desembolsar até 160 libras (o equivalente a R$ 751) antecipado.
"Quem está ilegal se submete a tudo", lamenta o paulista Thiago. Ele diz que, apesar do preço alto, "se trabalhar pesado" dá para pagar as contas e até mandar um dinheirinho para casa. Por cada entrega, diz ele, os aplicativos pagam, em média, cerca de 3,75 libras, o equivalente a aproximadamente R$ 17 – o valor varia conforme a demanda por entregas. O salário mínimo no Reino Unido é de 8,21 libras (cerca de R$ 38) por hora para pessoas com idade acima de 25 anos.
O aplicativo de entrega faz o pagamento na conta bancária informada pelo titular - normalmente, a dele, mas a reportagem encontrou casos em que a conta bancária informada era a de quem tinha alugado o aplicativo para trabalhar. Nos dois casos, há um repasse - ou do valor do aluguel ou do dinheiro pago pelo aplicativo descontado o valor do aluguel.
Nem todo dono de conta cobra depósito ou aluguel antecipado. O depósito, segundo Mônica*, que recentemente diz ter começado a alugar sua conta da Deliveroo para entregas de bicicleta em Londres, seria uma garantia para ambas as partes caso algo dê errado.
"O depósito é para o caso de você desistir antes de fazer o dinheiro do mês ou usar minha conta indevidamente... Não cobro aluguel antecipado", diz Mônica, que abriu a conta, alugou ela para uma pessoa por um tempo e, na semana passada, procurava a segunda cliente.
Solícita, Mônica explicou que entregas de bicicleta têm menos despesas que de moto, mas a pessoa precisa "ter corpo". "É como fazer faxina", diz. Quanto ganha por semana? "Depende do seu pique", responde, lembrando que manhãs, hora do almoço e fim do dia normalmente são horários de maior movimento.
Ela orienta a escolher uma área mais plana com muitos restaurantes que façam vendas por meio dos aplicativos. Ela diz que, se fechar o acordo, repassaria, "toda terça-feira", o dinheiro das entregas, descontando as 50 libras do aluguel.
Já Carlos * diz que autoriza quem aluga sua conta a usar o próprio email e informar a própria conta bancária. Ele cobra 60 libras pelo aluguel semanal - mas não cobra depósito.
Os donos de contas sendo alugadas que conversaram com a reportagem negaram ter perguntado ao interessado em alugá-la se estava vivendo legalmente no Reino Unido.
Calotes
No mercado clandestino de contas de aplicativo, alguns donos de contas alegam alugá-las como forma de ajudar imigrantes ilegais dando a eles uma oportunidade de trabalho. Muitos donos de contas também já estiveram em situação ilegal.
Mas há também muitas histórias de donos de contas aplicando golpes nos que estão sem documentos.
No início de junho, na página do Facebook Os Motoboys de Londres, foi publicada a foto e o nome de um brasileiro. "Ladrão caloteiro!!! Cuidado, quem vier em Londres, chama a polícia". O texto dizia que a pessoa era acusada de "roubar brasileiros", alugando contas da Uber e do Deliveroo para, em seguida, "sumir com a grana". A postagem sumiu da página.
"Eu levei muito calote. Os brasileiros são safados", diz Thiago. "A primeira vez que aluguei uma conta, o cara pegou meu dinheiro (repassado pelo aplicativo) e sumiu. Na segunda tentativa, me pagou uma semana e depois não pagou mais."
O que dizem as empresas
Por meio de um porta-voz, a Uber Eats disse que "leva a questão da fraude de contas muito a sério e implementa várias verificações de segurança para quem entrega por meio do aplicativo".
"Isso inclui verificar se o mensageiro tem mais de 18 anos, passou por uma verificação de antecedentes criminais e possui um direito de trabalhar na conta. Os mensageiros são obrigados a informar a Uber Eats quando eles usam um substituto e os substitutos devem passar pelas mesmas verificações".
A legislação do Reino Unido prevê que entregadores, mesmo autônomos, tenham o direito de ter um substituto para os dias em que não possam trabalhar.
Além disso, a Uber Eats afirmou que trabalha "com as equipes de Home Office e de Inteligência de Imigração". Diz também que "qualquer um que esteja cometendo fraude enfrenta perda de acesso ao aplicativo".
Procurada, a Deliveroo disse que os desejam trabalhar como entregadores precisam passar "por várias verificações", incluindo verificação feita de modo presencial, comprovação de que pode trabalhar legalmente, nada consta criminal e verificações de seguro para motos.
Lembrou ainda que o uso de substitutos é um direito legítimo dos entregadores autônomos.
"No entanto, a Deliveroo tem uma abordagem de tolerância zero ao abuso nesta área e leva isso extremamente a sério, incluindo a investigação completa de quaisquer preocupações que possam surgir. Os entregadores da Deliveroo ou seus substitutos devem cumprir os requisitos", esclareceu a empresa.
A empresa diz que verifica e remove ativamente contas duplicadas. "As equipes de suporte da Deliveroo envolvem-se ativamente na comunidade dos entregadores para abordar quaisquer preocupações que possam ter e estamos trabalhando ativamente com as autoridades para ajudar a combater os incidentes limitados de abuso nessa área", afirmou.
Nenhuma das empresas, contudo, informou quantas contas foram desativadas e quantos casos de aluguel de contas para ilegais já foram identificados. A Stuart não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Quem for flagrado trabalhando e/ou vivendo ilegalmente no Reino Unido é convidado a sair do país espontaneamente. Se isso não acontecer, a lei prevê deportação. Há o risco ainda de detenção antes da deportação.
Também há punição para quem emprega uma pessoa sabendo ou que tenha "motivos razoáveis para saber", nas palavras do Home Office, que essa pessoa não tem o direito de trabalhar no Reino Unido. Se o empregador for condenado, a pena é de até cinco anos de prisão e multa sem valor fixo.
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