Na maioria das culturas, comer é uma experiência social ou comunitária, um momento para se desligar da rotina diária e estar com seus entes queridos.
Mas o que acontece se você tem de jantar sozinho e acha isso assustador?
Embora um quarto dos sul-coreanos vivam sozinhos, fazer as refeições sem outras pessoas presentes é considerado um tabu no país. Então o mukbang - pronuncia-se "muc beng" - oferece uma forma de ter companhia nessas situações.
A expressão mukbang combina a palavra coreana para "comer" (muk-da) com a palavra "transmissão" (bang-song). São transmissões ao vivo pela internet em que pessoas comem comida suficiente para alimentar uma família inteira enquanto contam histórias engraçadas.
Os números de audiência são impressionantes: uma de suas estrelas, o coreano Banzz, atrai em média de meio milhão de visualizações a cada vídeo, enquanto seu canal tem 3,3 milhões de assinantes. Ele supostamente come tanto que se exercita até 12 horas por dia para queimar todas as calorias ingeridas.
Mas por que isso é tão popular?
A comida está no coração da cultura coreana. "Assim como os esquimós têm mil palavras para a neve, os coreanos têm dezenas de milhares de termos relacionados a vários aspectos da alimentação", diz Jeff Yang, um crítico cultural asiático-americano.
Mas foi o avanço tecnológico do país que criou essa expressão da cultura culinária coreana.
"A Coreia tem uma cultura única de internet, impulsionada pela banda larga onipresente e acesso quase 24 horas por dia, 7 dias por semana às plataformas e mídias digitais, que se uniu a uma longa tradição de amor pela comida", afirma Yang.
O mukbang teve origem em 2010, com o site AfreecaTV, que permitia a interação entre o apresentador e os espectadores.
A tendência rapidamente se transformou em uma indústria lucrativa onde BJs (abreviação de broadcast jockeys) podem ganhar até US$ 10 mil (R$ 38,9 mil) por mês, sem incluir contratos de patrocínio.
Os BJs ganham dinheiro por meio de doações de espectadores na forma de "balões de estrelas", um tipo de moeda virtual que pode ser transformada em dinheiro vivo.
Como ser um mukbanger pode ser realmente lucrativo, isso está atraindo mais participantes.
Mas o mukbang não é apenas popular na Coreia do Sul: da AfreecaTV, foi parar no YouTube e, assim, tornou-se popular também nos Estados Unidos, onde BJs americanos começaram a fazer seus próprios vídeos.
"Não é de estranhar a ascensão do mukbang em todo o mundo", diz Yelena Mejova, que pesquisa a relação entre as atividades do mundo real e o comportamento na internet na Universidade do Qatar.
Ela diz que a linguagem da comida é internacional e familiar para qualquer pessoa. "É uma parte importante de todas as culturas. Como seres humanos, sempre queremos uma experiência de mídia que seja o mais próximo possível da vida real."
Mas essa moda também tem outro propósito. "Alguns coreanos ficam sozinhos por longos períodos e buscam algum tipo de solução para sua necessidade de socializar", explica Yang.
Jantar sozinho ainda é um grande tabu na sociedade coreana. "As pessoas temem que sua reputação seja prejudicada se os outros pensarem que elas são solitárias", diz Chang May Choon, correspondente na Coreia do Sul do jornal The Strait Times.
Em 2017, havia cerca de 5,6 milhões de pessoas vivendo sozinhas na Coreia do Sul, de acordo com dados do governo. O aumento de pessoas nesta situação nos últimos anos levou a um declínio do hábito de jantar acompanhado.
Uma pesquisa do instituto Hankook com mil adultos na Coreia do Sul realizada em 2018 mostrou que 46% das pessoas que moram sozinhas "sempre" se sentiam sozinhas e 44% se sentiam sozinhas "às vezes" - ou seja, 90% se sentiam sozinhas em algum momento.
O mukbang também pode gerar benefícios inesperados à saúde. Alguns BJs dizem que suas transmissões ao vivo ajudam pessoas com distúrbios alimentares, como despertar novamente o desejo por comida em quem não tem apetite.
O BJ Erik, o Elétrico, dos Estados Unidos, afirma que alguns de seus espectadores têm "dietas restritivas e querem viver de forma indireta através de mim". Ele sofreu de anorexia por anos e diz que fazer esses vídeos o ajudou a ficar mais relaxado com relação à comida.
Mas, enquanto os mukbangers americanos parecem mais interessados em "competições de comida" ou em lidar com distúrbios alimentares, com pouco envolvimento com seu público, os espectadores sul-coreanos parecem mais interessados no mukbang como uma forma de entretenimento ou uma maneira de obter companhia.
As mulheres tendem a ter mais espectadores do que seus colegas do sexo masculino na moda do mukbang.
"Mulheres atraentes são muito populares nos canais de mukbang, principalmente porque a cultura sul-coreana exige que as jovens sejam delicadas, educadas e contidas em seu comportamento", diz Yang.
"Há algo provocante e estranhamente excitante em ver uma jovem exceder essas limitações em seu canal."
E um conselho: se você odeia ouvir uma pessoa mastigando alimento e sorvendo líquidos, mantenha-se longe destes canais. Mas, para aqueles que adoram estes sons, o mukbang pode ser perfeito.
Alguns mukbangers tomam um cuidado especial para atender a um público interessado na resposta sensorial autônoma do meridiano (ASMR, na sigla em inglês), a sensação de bem-estar que um indivíduo pode experimentar como resultado de um estímulo específico, como o som de mastigações suaves.
Críticos dos vídeos dizem que o mukbang encoraja o consumo descontrolado de comida e a compulsão alimentar.
A taxa de obesidade da Coreia do Sul aumentou de 26% em 1998 para 34,8% em 2016. Em 2018, o Ministério da Saúde e Bem-estar coreano anunciou um plano para desenvolver diretrizes para combater o consumo compulsivo, para melhorar os hábitos alimentares e criar um sistema de monitoramento.
Mas a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) ainda prevê que a taxa de obesidade da Coreia do Sul deve dobrar até 2030.
Enquanto isso, milhares de pessoas continuam sintonizando seu canal favorito da mukbang todos os dias.
"Seja para estabelecer uma conexão social, superar transtornos alimentares ou ter um passatempo, não deveríamos ser livres para assistir algo tão inofensivo quanto pessoas comendo?", diz Jenny Cha, que assiste a vídeos de mukbang pelo menos uma vez por dia.
"É assustador pensar que nosso governo pode decidir o que podemos ou não assistir."
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