A ciência vive de experiências. Como define o método de tentativa e erro, é preciso que algo dê errado antes de acertar. E foi numa dessas experiências, ou melhor numa crise daquelas que não saem da memória, que cientistas brasileiros viram uma oportunidade que poderá ajudar a reescrever parte da história perdida do país.
A crise em questão foi o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro, ocorrido em setembro de 2018, que transformou em pó e cinzas 200 anos de história e um dos mais ricos acervos de antropologia e história natural da América Latina, com mais de 20 milhões de itens.
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Mas do pó e das cinzas dessa tragédia, que repercutiu em todo o mundo, surgiu um projeto experimental que pode contribuir na recuperação de parte do acervo tomografada antes do incêndio. Os pesquisadores estão adicionando "restos" do Museu Nacional a resinas de impressoras 3D para recriar ou restaurar peças.
Desde o fim de 2018, foram "fabricados" com carvão e restos de madeira resgatados dos destroços do museu um fóssil do crocodilo pré-histórico Mariliasuchus amarali, que viveu no Brasil há quase 70 milhões de anos e um shabit, tipo de estatueta funerária egípcia que era colocada junto a corpos mumificados do Egito Antigo.
Mas o maior desafio do grupo deve vir em breve: a impressão da réplica do crânio de Luzia, fóssil humano mais antigo do Brasil, com detritos que antes tinham como destino o lixo.
A ideia partiu de pesquisadores do próprio Museu Nacional, gerido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com apoio de equipes da PUC-Rio e do Instituto Nacional de Tecnologia (INT). Eles elaboram testes para adicionar materiais diferentes a resinas utilizadas em impressoras 3D, equipamentos usados na fabricação de peças distintas a partir de softwares próprios.
Do pó retornarás
Com autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), responsável pela recuperação do prédio centenário que abrigava o museu, foram recolhidos itens que seriam descartados para análise de equipes do Laboratório de Processamento de Imagem Digital (Lapid), sob a coordenação do pesquisador Sergio Alex Azevedo.
A ideia só foi viável graças a estudos prévios conduzidos pelo Lapid, ligado ao Museu, feitos ao longo de 15 anos em parceria com o pesquisador Jorge Lopes, da PUC-Rio e do INT. Juntos, eles tomografaram centenas de artefatos da coleção principal do museu no intuito de preservar a memória caso algo viesse a provocar a perda do acervo - o que se concretizou no ano passado.
Foram mais de 300 tomografias, de fósseis de dinossauros a múmias egípcias. Com o scanner a laser, foi possível observar o interior de sarcófagos e o que continham urnas funerárias da cultura marajoara, sociedade indígena que viveu na Amazônia há mais de mil anos.
"A gente fez o primeiro teste para mostrar que era possível fazer. Várias pessoas ficaram interessadas e encantadas pelo simbolismo. É uma tecnologia que surgiu do lixo e que pode dar um peso maior na recuperação do acervo do Museu Nacional, uma possibilidade de incorporação de materiais" afirma Azevedo.
Antes de aplicar as cinzas na produção de peças, foram adicionados carvão e madeira queimada comum à resina para impressora 3D. Jorge Lopes explica que após os primeiros testes, ficou evidente que as peças impressas não se esfarelavam, o que garantiria o uso dessas substâncias pouco usuais.
"Eu via a luta dos estudantes trabalhando nos escombros para salvar alguma coisa e pensava se aquele pó todo e aquela cinza toda serviriam para algo. Isso tem um apelo muito interessante, gera uma conectividade", explica. Segundo Lopes, os testes estão sendo feitos com recursos próprios.
De acordo do Azevedo, a técnica abre possibilidades para a recuperação de fósseis, por exemplo.
"No caso de dinossauros, poderia colocar na resina materiais da rocha onde aquela peça foi encontrada. Pode-se colocar mais materiais que sejam compatíveis com a construção, criando uma cópia 3D mais fiel ao original", explica.
Outros testes deverão ser realizados pela equipe, que pretende reconstruir cerâmicas marajoaras com lama da região de Marajó, e recuperar outros artefatos egípcios.
Museu conseguiu R$ 85 milhões para recuperação
Em janeiro, a BBC News Brasil mostrou que Museu Nacional deverá ter em caixa R$ 85,4 milhões para obras emergenciais, recuperação do prédio histórico e reconstrução do acervo. O diretor da instituição, Alexander Kellner, explicou que boa parte do dinheiro demoraria a chegar devido à burocracia, mas que o montante já tem destinação prevista e não pode ser usado para outras finalidades.
O orçamento anual do museu, repassado pela UFRJ - mantida com recursos do governo federal -, havia caído drasticamente nos últimos cinco anos: de R$ 531 mil, em 2013, para R$ 54 mil, em 2018.
O diretor Kellner explicou que a verba prevista era excepcional para começar a reconstruir a instituição, mas ressaltou que "não se faz uma coleção de dois séculos em duas décadas". Para ele, mais importante no momento é discutir como viabilizar a manutenção do local após sua recuperação.
"Antes do incêndio, o Museu Nacional precisaria de US$ 3,8 milhões (R$ 14,7 milhões) para manutenção básica de sua estrutura. No entanto, só recebia R$ 500 mil. Eu estimo que, numa janela de até seis anos, vamos precisar de US$ 10 milhões (R$ 38,8 milhões) anuais para mantê-lo em condições razoáveis."
Para 2019, Kellner afirma que serão três as prioridades. A primeira delas é a recuperação do palácio, em seguida o resgate e recomposição do acervo, e, por último, o fomento à pesquisa na instituição.
No fim de março, um laudo divulgado pelo jornal O Estado de S. Paulo apontou que a Polícia Federal concluiu que um curto circuito em um aparelho de ar-condicionado do auditório, localizado no primeiro andar do prédio, causou o incêndio.
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