Eles começaram a ser domesticados há cerca de 10 mil anos e hoje são os animais de estimação mais difundidos e populares do planeta.
Estima-se que existam mais de 600 milhões de gatos vivendo nos ambientes dos humanos. Muita gente se pergunta, no entanto, como o felino atingiu esse status se não tem nenhuma utilidade prática para a sobrevivência das pessoas, pois não são usados para trabalho, nem fornecem leite, carne, lã ou ovos.
Além disso, eles podem transmitir doenças, como a toxoplasmose, e causar desastres ecológicos, dizimando outras espécies quando soltos em ambientes frágeis, como ilhas. É o que está acontecendo em Fernando de Noronha, onde gatos domésticos voltaram a ser selvagens e estão colocando em risco a sobrevivência de aves e répteis.
Atualmente, vivem em Fernando de Noronha mais de 1.300 gatos, para uma população humana de entre 4.500 e 6.000 habitantes - ninguém sabe ao certo.
"Isso representa uma das maiores densidades de gatos já registradas em ambientes insulares em todo o mundo", diz a pesquisadora Tatiana Micheletti, do Instituto Brasileiro para Medicina da Conservação (Tríade), uma associação civil sem fins lucrativos, que trabalha para o controle de espécies exóticas na ilha.
"A falta de cuidado por parte dos proprietários, associada ao instinto de autossuficiência, à alta capacidade reprodutiva, e à oferta de recursos, possibilita a esses animais caçarem espécies endêmicas e ameaçadas."
Além dos felinos, há outras espécies invasoras em Fernando de Noronha, que também estão causando danos, mas em menor escala. "Da fauna, temos um grande número delas, como, por exemplo, a garça-vaqueira (Bulbucus ibis), o lagarto teiú (Salvator merianae), lagartixas (Hemidactylus mabouia), o sapo-boi (Rhinella jimmi), pererecas (Scinaxsp.), ratos (Rattus rattus e R. norvegicus) e camundongos (Mus musculus)", conta o analista ambiental Ricardo Araújo, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), coordenador de Pesquisa e Manejo de Exóticas do Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha.
Entre as plantas, a leucena (Leucaena leucocephala), também conhecida como linhaça, é a que causa mais problemas. "Ela é bastante eficiente, resistente e está muito disseminada na ilha", diz Araújo.
"Essa planta compete de forma bastante agressiva com as nativas e, em alguns lugares, como as praias da Área de Proteção Ambiental (APA) de Fernando de Noronha, ela já é predominante. Em outros locais, só encontramos leucenas na vegetação."
Mas a espécie invasora que mais preocupa é mesmo o gato. Segundo a pesquisadora Tainah Guimarães, do Centro Nacional de Avaliação da Biodiversidade e de Pesquisa e Conservação do Cerrado (CBC), também do ICMBio, há três tipos deles no arquipélago: domésticos ou domiciliados (aqueles que têm dono e casa); animais errantes ou peri-domiciliados (que não possuem donos e vivem nas vilas perto de pousadas e restaurantes, e são alimentados por todos); e o ferais ou asselvajados (sem donos e que vivem na mata, sem interação com humanos).
Esses últimos são a demonstração clara de uma das características da espécie. Mesmo domesticados e convivendo com seres humanos, eles nunca perderam totalmente seus instintos naturais. Se forem soltos na natureza, eles se viram muito bem sem a ajuda das pessoas.
Por isso, há quem diga que ele é o mais selvagem dos animais domésticos e nunca chegou a ser domesticado totalmente. Outros acreditam que foram eles que escolheram os humanos para conviver, e não o contrário.
Seja como for, de acordo com Tainah, os domésticos e os errantes predam diversos lagartos e aves nativas todos os dias. "Algumas pessoas residentes e visitantes não percebem esse impacto, porque são predadores pequenos, mas as populações de animais abatidas o sentem."
"No caso dos ferais, eles vivem e se alimentam basicamente da natureza. Em Fernando de Noronha, estão nas áreas do parque, que são as mais preservadas. Entre suas presas favoritas está a mabuia (Trachelepys atlantica), uma espécie de lagarto endêmica do arquipélago."
Esses gatos também têm colocado em risco a sobrevivências de várias espécies de aves. "Eles causam danos diretos por meio da predação de indivíduos adultos ou filhotes de cinco delas listadas como ameaçadas de extinção", conta Araújo.
"Dessas, duas são terrestres endêmicas do arquipélago, o sebito (Vireo gracilirostris) e a cocoruta (Elaenia ridleyana), e três marinhas, o rabo-de-junco-de-bico-laranja (Phaethon lepturus), o atobá-de-pés-vermelhos (Sula sula) e a noivinha (Gygis alba)."
Segundo Araújo, foram observados, em diferentes ocasiões entre os anos de 2014 e 2016, por pesquisadores do Instituto Tríade, repetidos ataques de gatos ao rabo-de-junco-de-bico-laranja, principalmente em áreas de nidificação da ave no parque nacional na ilha principal do arquipélago.
"Esse impacto é um agravante significativo ao estado de conservação dessa espécie no Brasil, pois Fernando de Noronha é o principal local de reprodução dela, assim como também do atobá-de-pés-vermelhos e da noivinha no Atlântico Sul."
Para a médica veterinária Patrícia Pereira Serafini, do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação das Aves Silvestres (CEMAVE), do ICMBio, não se deve menosprezar esses eventos.
"O impacto de gatos domésticos sobre as aves marinhas em ilhas é um problema mundial e tem sido exaustivamente demonstrado", diz. "Se não for feito nada agora, Fernando de Noronha será o exemplo mais recente de desastre ecológico e extinção de espécies em ilhas causadas por esses felinos, como historicamente já ocorreu em outras 120 ao redor do mundo."
Exemplos desse tipo não faltam. Tatiana, do Instituto Tríade, cita vários deles. "Pesquisadores estimaram que na ilha Marion, pertencente à África do Sul, os gatos mataram mais de 455 mil aves marinhas, por ano, durante a década de 1970", diz.
"No mesmo local, o petrel-mergulhador (Pelecanoides urinatrix) também foi extinto após intensa predação, assim como o mérgulo-sombrio (Ptychoramphus aleuticus), das ilhas Coronados, no México."
Outro exemplo vem da ilha Kerguelen, pertencente à França, onde aproximadamente 1,2 milhão de aves marinhas foram mortas anualmente também na década de 1970.
"Na ilha Ascensão, a população do trinta-réis-das-rocas (Onychoprion fuscatus), que também vive em Fernando de Noronha, foi reduzida a pouco mais de 10% entre as décadas de 1940 e 1990 por conta da predação por gatos", acrescenta.
"Em uma situação extrema, esses felinos levaram o petrel-das-tormentas-de-Guadalupe à extinção global, visto que essa espécie era restrita à ilha Guadalupe, no México."
Da mesma forma, diz Tatiana, diversas populações de aves chegaram a ser extintas localmente devido à intensa predação por gatos, como a pardela-de-ventre-preto (Puffinus opisthomelas), da ilha Natividade, no México, onde os felinos chegaram a matar 1 mil delas por mês.
"Considerando que Noronha é um hotspot de nidificação para aves endêmicas e marinhas ameaçadas, além de ser o único habitat no mundo onde encontramos o mabuia de Noronha, o impacto do gato pode ser considerado muito grande e uma verdadeira ameaça à conservação da biodiversidade."
Devido à gravidade dos problemas causados pelos gatos, o governo federal, por meio do ICMBio, a Autarquia Territorial Distrito Estadual de Fernando de Noronha, que é a administração local, universidades, organizações não governamentais e os ministérios públicos federal e estadual vêm procurando soluções.
Uma delas seria a captura e devolução deles ao continente. O problema é que os felinos de Fernando de Noronha têm uma cepa de toxoplasmose diferente da que os do continente carregam, e os pesquisadores não aconselham a transferência.
A castração e a esterilização dos felinos da ilha é outra solução, que já vem sendo adotada. A dificuldade é que a curto e médio prazo ela não resolve o problema, pois os animais castrados e esterilizados também continuam se alimentando e predando as espécies nativas.
Por isso, foi elaborado o Plano de Ação para o Controle de Gatos (Felis catus) na Área de Proteção Ambiental de Fernando de Noronha - Rocas - São Pedro e São Paulo e no Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, que foi instituído pela Portaria nº 58, de 4 de fevereiro de 2019.
O objetivo é "reduzir os impactos dos gatos sobre a fauna nativa e o risco de zoonoses [doenças transmitidas por eles] em Fernando de Noronha."
Para atingir essa meta, o plano, com prazo de vigência até março de 2023, pretende reduzir a população de gatos ferais em Noronha, por meio da castração; controlar o número de domiciliados e peridomiciliados; fazer campanhas para sensibilizar a sociedade sobre os impactos desses animais à biodiversidade e o risco à saúde pública; e realizar monitoramentos que subsidiem estratégias para o manejo adaptativo e integrado dos felinos e outros predadores exóticos.
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